terça-feira, novembro 30, 2010

Hexágonos, carbono e o Prémio Nobel da Física de 2010






Hexágonos, carbono e o Prémio Nobel da Física de 2010
Nuno Peres
23:28 Quarta feira, 6 de Outubro de 2010


Um plano, ou monocamada, de grafeno, ao lado de dois planos, ou bicamada, do mesmo material. A zona mais escura corresponde muitos planos de grafeno empilhados.
Um plano, ou monocamada, de grafeno, ao lado de dois planos, ou bicamada, do mesmo material. A zona mais escura corresponde muitos planos de grafeno empilhados.
Peter Blake, Universidade de Manchester









No romance de Edwin Abbot "Flatland: A Romance of Many Dimensions", é criado um mundo abstracto bidimensional habitado por polígonos; a novela é uma crítica à sociedade e cultura Vitorianas. Nesse mundo abstracto a duas dimensões, embora pertencentes à nobreza, os hexágonos ocupam o nível mais baixo dessa classe social. Ora todos sabemos que não existem mundos bidimensionais povoados por hexágonos. E, contudo, a Academia Sueca das Ciências distinguiu com o Prémio Nobel da Física de 2010 um mundo bidimensional povoado apenas por hexágonos em cujos vértices residem átomos de carbono, elevando, deste modo, aquele polígono ao mais alto estrato da nobreza dentro das ciências físicas.

Os laureados com o Prémio Nobel da Física de 2010 são os Professores André Geim e Kostantin Novoselov. A citação relativa à atribuição do prémio é: "pelos seus trabalhos revolucionários sobre o material bidimensional grafeno". O que é, então, o grafeno? Esta nova forma de carbono puro consiste numa rede de hexágonos cujos vértices são ocupados por átomos de carbono. Ou seja, o grafeno é uma folha de espessura atómica - da espessura de um único átomo de carbono, tornando real o mundo imaginado por Abbot. No grafeno os hexágonos estão fixos enquanto que alguns dos electrões do carbono são livres de se movimentarem por toda a rede, saltando de átomo de carbono em átomo de carbono. Este sistema é o sólido mais fino que alguma vez a Natureza produzirá. Na verdade, antes dos resultados de 2004 obtidos pelo grupo do Prof. Geim qualquer físico diria que um material como o grafeno não poderia nunca existir. Felizmente a Natureza é muito mais imaginativa que o seu principal inquiridor. E assim cá temos o grafeno.

O método original de produção de grafeno é tão simples que chega a parecer ingénuo. A grafite (ou carvão) é o empilhamento de um número gigantesco deste planos de hexágonos, sendo produzida pela Natureza ao longo de milhões de anos, a partir de matéria orgânica, por processos fisico-químicos muitos lentos. A ideia da equipa liderada por André Geim foi a de conseguir remover de um cristal de grafite um único desses planos. Como? Simplesmente usando fita-cola para esfoliar a superfície da grafite, um pouco como quem depila as pernas usando cera. Assim, tal como os pelos das pernas vêm agarrados à cera, também folhas individuais de grafeno vêm agarradas à fita-cola. Depois, pressiona-se a fita-cola num vidro e usando um microscópico convencional procura-se por um deste planos nos resíduos deixados no vidro. Com alguma persistência encontram-se planos tão grandes como o que se ilustra na figura. Recentemente, um novo método químico, envolvendo reacções de gases contendo carbono em contacto com superfícies de cobre aquecidas, permite produzir folhas de espessura atómica com cerca de 50 cm de lado. Que tal soa termos nas nossas mãos uma folha de um átomo de espessura?

No testamento de Alfred Nobel a física é a primeira ciência a ser nomeada. Na parte que interessa para este texto pode ler-se: "The whole of my remaining realizable estate shall be dealt with in the following way (...) distributed in the form of prizes to those who, during the preceding year, shall have conferred the greatest benefit on mankind."

A pergunta ocorre com naturalidade: quais os benefícios que o grafeno trouxe, ou trará ainda, à humanidade? Hoje em dia a interpretação do que a palavra "benefícios" significa é algo lata, pois inclui tanto aplicações práticas como avanços significativos no conhecimento que a humanidade tem da Natureza, sem que a isso estejam necessariamente ligadas aplicações de natureza utilitária. No caso do grafeno encontramos os dois mundos reunidos: o do avanço do conhecimento em áreas virgens da Natureza e o das aplicações úteis para a vida das pessoas, decorrentes das investigações fundamentais.

Do ponto de vista da física fundamental, o aspecto mais extraordinário é o facto dos electrões no grafeno, ou seja, movendo-se no tal mundo bidimensional de hexágonos bem ordenados, comportarem-se como se fossem partículas que perdem toda a sua massa, ou seja, partículas no chamado regime ultra-relativista. Por essa razão, foi necessário recalcular todo um conjunto de propriedades electrónicas para os electrões no grafeno, pela simples razão de não haver nem livros nem artigos de onde copiar os resultados. Nunca antes tinha ocorrido aos físicos que num sistema sólido, em cima duma bancada de laboratório, os electrões, como que por magia, perdessem toda a sua massa. Depois do grafeno, todos os novos livros de texto de ensino universitário para os cursos de física da matéria condensada irão incluir novos capítulos sobre este material, e livros mais especializados irão ser-lhe inteiramente dedicados.

No que diz respeito às aplicações utilitárias do grafeno, são elas também inúmeras, algumas já em processo de fabricação em massa. Assim, a atribuição do Prémio Nobel, em tempo muito curto - cerca de seis anos desde a descoberta do grafeno, a qual ocorreu no final de 2004 - a André Geim e Konstantin Novoselov, premeia quer o avanço do conhecimento fundamental quer, como Alfred Nobel deixou escrito, o facto do material prometer muitas e variadas aplicações que beneficiarão a humanidade.

Que aplicações são essas de que atrás se falou? Sendo elas inúmeras, talvez as mais importantes sejam:

* Novos paneis tácteis ("touch-screens") para monitores de computadores e aparelhos de comunicação móvel. Um novo e recente método de produção de grafeno (diferente do que acima se explicou) permite produzir folhas deste material de cerca de 50 cm de largura, sendo possível ter entre as nossas mãos uma folha de espessura atómica. Como o grafeno é transparente, é claro que pode ser usado para produzir monitores. Como é flexível e não quebra com facilidade trará mais durabilidade aos monitores desses aparelhos. Como a sua produção é muito mais barata que os óxidos transparentes usados hoje em dia, trará uma diminuição do preço das tecnologias - aspecto que será muito apreciado.
* Células solares. As células solares necessitam de eléctrodos transparentes à luz, numa larga gama de frequências. A transparência, a flexibilidade, a resistência às deformações e o facto de ser metálico, tornam o grafeno um excelente material para este tipo de dispositivos.
* Detectores de radiação, quer para antenas de uso militar quer para sistemas de vigilância em aeroportos.
* Sensores de pequenas quantidades de certos tipos de moléculas em ambientes fechados. A condutividade eléctrica do grafeno é muito sensível ao tipo de moléculas que se ligam à sua superfície, pelo que se poderão conceber detectores para espécies químicas específicas. Este tipo de "nariz" para gases tem o seu poder olfactivo muito aumentado quando a superfície do grafeno é funcionalizada com ADN.
* Sensores de tensão. A condutividade eléctrica do grafeno depende do estado de deformação do material. Este sustenta deformações até 20% sem quebrar e sem comportamento plástico. É concebível a incorporação em estruturas de sensores baseados em grafeno, para monitorizar estados de deformação das mesmas.
* Sequenciação das bases que constituem o ADN. Produzindo pequenos orifícios numa membrana de grafeno e fazendo passar por esse orifício moléculas de ADN, mostrou-se que a corrente eléctrica através do orifício é sensível ao tipo de base.
* Metrologia, na definição do padrão de resistência eléctrica, recorrendo ao efeito de Hall quantificado.

Finalmente, quem são André Geim e Kostantin Novoselov? São físicos para os quais o gozo está na compreensão dos mistérios da Natureza. Não têm medo de investir tempo em projectos que podem muito bem falhar. Não ficam presos por toda a vida ao que em dado momento aprenderam a fazer, acumulando publicações com a ferramenta que sabem usar. São pessoas extremamente exigentes consigo mesmos e como todos aqueles com quem colaboram. São colegas de fino humor e com que se passa um almoço em agradável companhia.

Como última nota, que esta descoberta estimule e motive os estudantes do Ensino Secundário a escolherem o estudo da Natureza, isto é a Física, como área de formação superior. Ao fim e ao cabo, o Prémio Nobel está ao alcance de um bocado de carvão e de uma fita-cola!

Kostantin Novoselov recebe o Prémio Nobel por trabalho de investigação que realizou enquanto estudante de doutoramento.

André Geim gosta muito de mergulho aquático, de escalar montanhas e é o primeiro físico a acumular os Prémios Ig-Nobel (2000) e Nobel (2010). (O prémio Ig-Nobel é atribuído a trabalhos científicos que "primeiro fazem as pessoas rir e depois pensar".)


Fonte:http://clix.expresso.pt/fisica=s24956

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